Alguns passos…

Por Carla Cavallieri
Eu fui mãe, pela primeira vez, aos 21 anos. Escutei do obstetra que eu já estava velha para ter filhos enquanto que, na sala de espera, duas irmãs: uma de 16 e outra de 15 anos aguardavam. Eu juro pra vocês que, na hora, eu não entendia.
Ágatha veio ao mundo, e eu lutando para que ela pudesse ter o mínimo de dignidade, uma vida mais calma, melhor do que a minha. Não que a minha vida tivesse sido ruim, como os mais velhos dizem: como pobre eu tive de tudo.
No entanto, há certos tipos de luta que somente quem é mãe, negra e periférica pode travar.
Enquanto a avó paterna da minha filha se preocupava com o exame de DNA, eu me preocupava em dar aula em uma escolinha primária não registrada e ganhava 200 reais por mês, no último ano do normal em nível médio. Era aquela coisa: “Vai fazer normal porque caso nada dê certo na sua vida, você já tem uma profissão…”, e assim seguimos.
Não, eu não me preocupei com o que diziam de mim, eu precisava trabalhar e estudar para minha filha.
Quando Ágatha tinha de 4 para 5 anos, eu entrei para faculdade, fui fazer História na UFRRJ e segui dando aula em dois horários, estudando à noite e tentando dar o melhor para minha filha. Morando com a minha mãe (que é a minha avó), fui criada pela minha avó desde desde novinha. Como muitas IrMães, minha mãe tinha que trabalhar e eu ficava com a minha avó, que eu nunca vi como avó, e sim como mãe, desde quando eu me conheço como gente.
Minha mãe faleceu quando eu tinha dez anos, ela era enfermeira e estava terminando a faculdade de odontologia. Uma questão que me intrigava é: por que ela tinha que trabalhar tanto, por que que ela tinha que estudar tanto, e deixar eu e minha irmã com a minha outra mãe? Nunca nos faltou nada como pobres no entanto, os momentos que estávamos com ela era de pura alegria e descontração.
A minha segunda gravidez chegou num susto tremendo. Afinal de contas, Ágatha estava com oito anos, eu trabalhava em dois horários, estudava à noite e segui, por muitas vezes, anulando minhas querências e transformando minha luta diária em condutor para sobrevivência.
Akillah foi planejada, no entanto quando iniciamos o planejamento eu já estava grávida. kkkkkkkkkkkk.
Desde a gravidez da Aisha, eu e Samuel conversamos e chegamos à conclusão para que eu concluísse a graduação que, diga-se de passagem,  não é mole porque a academia para preto e pobre faz com que você se sinta fora do seu lugar. Eu relutei muito, afinal, quem fica em casa cuidando dos filhos é mulher submissa, (fui ensinada assim) dependente de marido, etc.
Eu tinha que trabalhar o dia todo, estudar à noite e mesmo, que as condições permitissem, eu não poderia ficar em casa, estudar e cuidar das minhas filhas.
Foi uma batalha interna e externa muito grande: eu pensava que ficar em casa, me dedicar aos estudos, à maternidade e à minha casa seria a anulação de toda uma vida,  eu tinha que morrer pra vida, tanto profissional quanto pessoal.
A maternidade da Aisha me fez questionar uma série de acontecimentos cotidianos que eu tentava lembrar da época da Ágatha e não conseguia. Fazia um esforço e não conseguia, e a resposta era: eu não estava ali, estava dando aula.
A verdade é que o sistema quer que a mulher negra não viva, quiçá, sobreviva. E se sobreviver a tantos percalços, que ela sobreviva: mutilada, desonrada e adoecida, física e emocionalmente.
A verdade é que nós não podemos nos dar o “luxo”. O tal do luxo que, na verdade, não é luxo algum, é uma condição normal que eu e qualquer outra mulher negra e mãe tem direito.
A branquitude faz questão de que você se sinta sortudo de possuir algo que os mesmos acham que pertence a eles ou, até mesmo se possuir, precisa ser algo dado por eles, saca? Como se eles fossem os salvadores da pátria, sabe?
Nós temos quer ser ausentes em casa, ter que pedir pra sair no emprego, o que é direito, para ir a uma reunião escolar que sempre é dia de semana e sempre pela manhã, chegar em casa, afazeres domésticos e familiares, são partes do cotidiano de quem possui a cobrança nas costas.  Não é submissão, e sim é o que nós nos cobramos, fazem com que nós sempre estejamos em falta, sempre estejamos devendo algo aos nossos filhos, nossa família quando, na verdade só devemos a nós a verdadeira compreensão.
Eu percebi que a maternidade só me tornou mãe a partir do momento em que eu parei para tentar me compreender e me entender.
Entender como cheguei até aqui. Já vivi algumas coisas e sobrevivi a muitas delas, não adoecida, no entanto com algumas marcas que me permitiram chegar a esta conclusão. Ser paciente comigo, por mais que todo o sistema branco diga que é luxo eu querer acompanhar o desenvolvimento das suas crias de perto, participar de cada instante de cada problema, inclusive de algumas febres, resfriados ou doenças de perto. Porque até disto nos privam ás vezes, ou então são só nestes momentos que estamos perto dos nossos filhos.
Às minhas IrMães, que eu sei que são muitas: um abraço imensamente forte, um colo para descansar, para chorar e uma mão para dar… Não para que você seja forte, mas para que você seja viva, independente de qualquer situação: seja viva para você e sua família e não sobre(VIVA).

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